Fugas: Primavera – Silêncio, que estão a cantar as aves

Mais um dia de isolamento. Nuno toma o primeiro café da manhã na varanda do seu apartamento, num terceiro andar, algures numa densa zona urbana de Vila Nova de Gaia. Por ali — que estamos todos em teletrabalho, cada um na sua “gaiola” —, a presença e a diversidade de aves selvagens são baixas por excesso de cimento e por falta de variedade de habitats. “Alguns jardins, uma quinta por perto, terrenos abandonados, com matos, à espera de construções, e um resto de sobreiral. Fora isso, telhados e ruas”.

A cerca de 200 quilómetros de distância — em linha recta, porque o estado de emergência nos tolhe os movimentos —, no centro histórico de Santarém (”que não é o sítio ideal para observar a natureza, mas onde é possível observar a natureza”), Domingos também vive confinado a um apartamento e “com plena consciência” de que o confinamento “não é igual para todos”. Os mais azarados, admite, estão num apartamento.

Cada qual no seu “habitat”. Casa com quintal ou jardim, moradia no campo, quinta, herdade… Mais ou menos espaço. Mais ou menos paz. Mais ou menos aves.

Estamos na Primavera, auge das floradas. Muitas das aves migradoras que nos visitam no Inverno já partiram para Norte. As que aparecem no Verão estão a chegar, exibem-se, acasalam, cantam. “A conjugação deste local com esta época do ano transforma a minha varanda num dos piores locais para observação de aves”, queixa-se Nuno Gomes Oliveira, fundador do Parque Biológico de Gaia, agora presidente do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (FAPAS), pouco habituado a uma vida de claustro. “Mas elas andam por aqui, haja atenção”, avisa, desde o seu terceiro andar, no Monte da Virgem, zona todos os dias sobrevoada por uma águia-de-asa-redonda. “As pessoas não têm hábito de olhar para o céu. É mais ver os aviões… Também é preciso treino e experiência. Em qualquer situação se observam aves. Tenho visto muitos pássaros desde a minha varanda.”

Quando vai à janela do seu apartamento em Santarém, que fica junto ao rio, que é “um corredor de biodiversidade”, Domingos Leitão, presidente da Sociedade Portuguesa do Estudo das Aves (SPEA), vê uma série de aves mais adaptadas ao ambiente urbano, pombos domésticos (“a ave mais comum nesta cidade”), pardais-do-telhado em pequenos quintais, pintassilgos, chamarizes nas antenas de televisão, rabirruivos, melros e todo um conjunto de espécies residentes que “neste momento são muito visíveis, muito conspícuas porque estamos em plena Primavera, altura em que os machos defendem o seu território”. Sim, a pandemia em Portugal chegou com a Primavera. Já lá chegaram as andorinhas-dos beirais, as andorinhas-das-chaminés, o andorinhão-pálido, o andorinhão-comum… “Há até algumas aves de rapina, o milhafre-preto e mesmo a águia-calçada que vem caçar pombos à cidade.”

“Os citadinos vão reparar mais nestas coisas”, garante Domingos, que, sem sair de casa, sabe que pode ver peneireiros, um pequeno falcão que nidifica nas varandas e nos telhados dos edifícios altos. “Confinadas em casa e nas proximidades, as pessoas vão reparar mais nisso. Vão descobrir a biodiversidade que existe junto às suas casas ou nos seus curtos passeios terapêuticos.” “Não há mais aves agora”, diz Nuno Gomes Oliveira. “Há é mais olhos a ver as aves. As pessoas estão mais disponíveis para ver. Simplesmente isso.”

Na véspera da conversa com a Fugas, Nuno tinha registado “uma vintena de espécies” sem sair de casa. Desde a sua varanda. Tudo anotadinho: “Vários melros (Turdus merula) cantam nas árvores próximas, marcando o seu território. Uma toutinegra-de-barrete-preto (Sylvia atricapilla) atravessa a rua, vinda dos matos de um terreno à espera de construção, fazendo companhia a uma carriça (Troglodytes troglodytes) que talvez ali nidifique. Os pardais-dos-telhados (Passer domesticus), outrora tão comuns nas cidades e vilas, são hoje de observação rara; um ou outro num telhado, onde também o rabirruivo preto (Phoenicurus ochruros) marca presença.

Pousado numa antena de televisão, um pintassilgo (Carduelis carduelis) emite o seu canto melodioso. Ainda poucas andorinhas-das-chaminés (Hirundo rustica) chegaram da sua migração e muito menos os andorinhões-pretos (Apus apus) que se abrigam e nidificam sob o telhado de uma casa próxima, em cujo jardim a rola-turca (Streptopelia decaocto) também é presença regular e dois chapins-azuis (Cyanistes caeruleus) exploravam a copa de um cedro. Aproveitando o calor do meio-dia, uma águia-de-asa-redonda (Buteo buteo) surge todos os dias no ar, à procura de algum resto de comida ou animal morto.

Raro por aqui, um gavião (Accipiter nisus) atravessou o horizonte. Ouve-se o barulho das pegas-rabudas (Pica pica), que se vão concentrando em torno de um sobreiro próximo onde também um gaio (Garrulus glandarius) se abriga ao fim da tarde. As gaivotas-de-patas-amarelas (Larus michahellis) tentam aproveitar o que resta da comida colocada por algumas pessoas à disposição dos gatos vadios. Pelo fim da tarde, os pombos-torcazes (Columba palumbus) regressam do sobreiral próximo, onde comeram bolotas durante o dia”. “As aves estão cá. Basta estar atento”, resume.

Também o fotógrafo Carlos Rio, por estes dias “preso” na sua casa em Fão, tem saudades do seu “escritório”, o estuário do Cávado, que em dias de maré baixa destapa os lodaçais e uma “autêntica praça de alimentação para as aves limícolas”. “Nós vemos coisas sentados no sofá”, avisa. Documentários da vida animal, “coisas que acontecem à nossa frente”.

A vida selvagem “não são só rinocerontes e tigres”, sublinha. “Nós temos a nossa. No estuário, no Inverno, temos as águias pesqueiras, que entram pelo rio adentro com as garras em riste e apanham peixe enormes. É brutal. Às vezes estou a vê-la a fazer isso em frente às piscinas de Esposende cheias de gente e ninguém está a ver aquilo, que é um espectáculo fabuloso. Isso vê-se todos os dias no Inverno. Todos os dias! E as pessoas estão ali a passear e só vêem gaivotas.”

Nos workshops de fotografia de aves, Carlos, também guia de birdwatching, costuma dizer que os quintais e os jardins lá de casa são os locais ideais para se começar a fotografar e a observar. “Acordem! Não precisamos de estar no sofá a ver aves na televisão. Nós temos isso aqui!”

É natural vermos mais aves durante a pandemia? “O facto de alguns espaços estarem desertos faz aumentar o número de animais”, responde o presidente do FAPAS. É natural vermos mais aves nos parques citadinos, nos jardins públicos ou nas ruas por nós “abandonadas”. Mas ouvimos mais aves agora, certo? “É natural… não se ouvem os carros. Na Rotunda da Boavista [no Porto] já existia o mesmo número de aves. Mas também existiam os carros e por isso não as ouvíamos. É um fenómeno um pouco paralelo ao do desenvolvimento do número de observadores de aves. Na altura dizíamos que tinham crescido algumas espécies. Mas não tinham. O que aconteceu foi simplesmente haver mais gente a observar e a descobrir.”

Quem gosta de observar aves, acorda de madrugada. E não é à toa. “Os sítios não têm gente, nem ruído”, justifica Nuno Oliveira. “A actividade humana espanta as aves. Agora nas praias, por exemplo, é natural que se vejam mais rolas-do-mar, mais pilritos. Porque não anda lá gente…” Não é descabido associar os efeitos do novo coronavírus à entrada de animais em espaço urbano. Mas esse não é um dado novo e indissociável da crise climática, cujos efeitos na fauna, segundo o presidente do FAPAS, “são ainda muito imberbes”.

“Veja-se o caso das gaivotas no Porto, das garças-reais no estuário do Douro e dos javalis que têm, entre aspas, invadido o espaço urbano e suburbano. Não é de todo um fenómeno que se possa co-relacionar com esta crise, que tem dias.”

Urge fazer alguma pedagogia. Com todos os trabalhos de campo suspensos e com a equipa em teletrabalho, a SPEA acredita que esta pausa “terá alguns aspectos positivos”, nomeadamente nessa capacidade de observação do meio ambiente e na desenvoltura do pensamento ambiental de cada um. “Não podemos escamotear isso. Aquilo que não nos mata, torna-nos mais fortes. Aqueles que sobreviverem a esta situação terrível vão ficar com outras capacidades e com outros interesses que poderão ser úteis no futuro.”

“Temos sempre tempo”, admite Domingos. “Normalmente temos é menos oportunidade. Na sua lufa-lufa diária, na azáfama da sua vida, as pessoas não usufruem da natureza na sua plenitude. Às vezes esquecem-se que a natureza está ali ao lado, que é extremamente generosa, extremamente diversificada e que nós podemos ajudá-la de diversas maneiras”.

Hoje, em pleno estado de emergência, indiferentes à crise e ao nosso isolamento social, as aves continuam a sua Primavera, assegurando a próxima geração e dando continuidade à vida.

“A pandemia não vai estar sempre aí”, lembra Domingos Leitão. Depois, quando isto tudo passar, as pessoas estarão mais aptas a usufruir e a conhecer “o maravilhoso mundo que lá está fora”. “E que sempre lá esteve.”

Notícia em: Fugas

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